O PROBLEMA DA
IDENTIFICAÇÃO DA POSTURA INTELECTUAL
Nildo Viana
Os intelectuais são os
indivíduos que compõem a classe social denominada intelectualidade. No entanto,
todas as classes sociais possuem subdivisões, bem como distintas manifestações
políticas, culturais. A classe intelectual possui suas frações de classes
(artistas, cientistas, técnicos, etc.) e isso gera diferença de valores no seu
interior, o que é mantido em outras subdivisões no seu interior (os cientistas
possuem elementos em comum enquanto fração de classe, mas também possuem
divisões internas, a começar entre os cientistas sociais e os cientistas
naturais).
Uma das divisões mais importantes
no interior da intelectualidade é a postura intelectual de cada indivíduo. O
que é “postura intelectual”? Como definimos em outro lugar, elas “são as
posturas dos intelectuais, indivíduos pertencentes à classe intelectual, que
expressa sua posição social no interior desta classe e seu posicionamento,
diante dela e da sociedade como um todo, incluindo suas concepções políticas”
(VIANA, 2015a, p. 12). Ou seja, a postura intelectual está ligada a posição do
intelectual na hierarquia da classe e das esferas sociais (VIANA, 2015b). Ela
se caracteriza por sua posição social e seu posicionamento (diante da classe,
da sua esfera específica e da sociedade e suas divisões de classes e política).
Posição social e posicionamento
tendem a ser semelhantes, embora, em alguns casos, possa haver certa
discrepância, que só a pesquisa de casos concretos pode delimitar e explicar.
Essa hierarquia pode ser dividida em segmentos, entre os quais os hegemônicos e
dissidentes, que são aqueles que competem pelos espólios da sua esfera
científica e da classe intelectual, tal como o reconhecimento dos seus próprios
pares e dos meios intelectualizados da sociedade. Estes são os integrados
dentro da classe intelectual e das esferas sociais, sendo que o que os
distingue é a competição pelo lugar principal, com os dissidentes querendo se
tornar hegemônicos. Os hegemônicos estão no topo da hierarquia intelectual e/ou
esférica
, e
conseguem manter a hegemonia no âmbito da classe intelectual e sua esfera
social particular. Isso significa que uma postura intelectual remete não apenas
para sua posição na hierarquia da classe intelectual e esfera científica, mas
também seu posicionamento. Os hegemônicos geralmente se posicionam a partir das
concepções hegemônicas na classe intelectual e esferas sociais tanto no que se
refere a sua autoimagem quanto em seu posicionamento político. Os dissidentes
são aqueles que estão em segundo plano e querem passar para o primeiro plano.
Trata-se de uma oposição que revela, no fundo, uma competição.
Essas duas posturas, as mais
comuns e predominantes, convive com outras, que já se separam do eixo central
da classe intelectual e das esferas sociais. Esse é o caso dos intelectuais
venais, cujo valor fundamental não é o mesmo dos setores mais integrados na
classe e esfera, e sim o dinheiro. Por isso são “venais”. Existem também os
intelectuais ambíguos, que ficam entre a reprodução da mentalidade da classe
intelectual e da esfera que pertencem e outras instituições (igrejas, partidos,
etc.). Um outro caso é o dos intelectuais amadores, que são aqueles que são
marginalizados e não conseguem se inserir adequadamente na classe intelectual e
em suas esferas e por isso não se integram no modus operandi seja da classe ou esfera que se aproxima e nem
possuem condições de disputar seus espólios. Por último, temos outra postura
intelectual, que é a dos intelectuais engajados, que se afastam da mentalidade
e competição pelos espólios da classe intelectual e de sua esfera particular,
geralmente realizando a sua crítica e apontando a transformação social radical
e total como objetivo ao invés dos espólios da classe e esferas sociais.
Politicamente, os hegemônicos e
dissidentes tendem a ser conservadores ou progressistas moderados, os venais
são geralmente conservadores, os amadores são mais afastados da política
institucional e mais heterogêneos em suas concepções políticas, os ambíguos
tendem a ser predominantemente progressistas (com um setor conservador, ligados
a instituições conservadoras) e os engajados são revolucionários. Obviamente,
que indivíduos concretos podem romper com essa tendência, mas é algo difícil,
especialmente no caso dos hegemônicos.
Essa hierarquia na classe
intelectual e no interior de suas subdivisões (esferas sociais) acaba criando
um forte problema para o pesquisador que quer identificar qual segmento que um
intelectual pertence, ou seja, qual sua postura intelectual. No caso dos
amadores, por sua posição, é mais fácil. Existem casos, no entanto, que é mais
difícil, como, por exemplo, no caso de indivíduos que historicamente mudaram
sua postura intelectual (dissidentes que se tornaram hegemônicos e vice-versa,
hegemônicos que se tornaram engajados ou vice-versa, ambíguos que se tornaram
dissidentes ou vice-versa, além dos casos nos quais ocorreu mais de uma mudança
na postura intelectual). Além disso, muitas vezes intelectuais ambíguos podem
ser confundidos com intelectuais engajados, dissidentes com hegemônicos, venais
com dissidentes e ambíguos, etc.
Machado de Assis era um
intelectual hegemônico? Lima Barreto era um intelectual engajado? Paulo Coelho
é intelectual venal? Enes da Cunha Teles é um intelectual amador? Jorge Amado
era um intelectual ambíguo? Essas questões remetem a um problema metodológico
que é o de como identificar a postura intelectual de um indivíduo pertencente
ou aspirante a pertencer à classe intelectual. Em certos casos, isso é
relativamente mais fácil, que é quando o intelectual em questão deixa explícitos
sua posição e posicionamento. No entanto, mesmo nestes casos pode haver
controvérsias, pois a autodefinição não é suficiente. Como Marx afirmou, não se
define uma época de transformação social pelo que ela diz de si mesma assim
como não se analisa um indivíduo por sua autoimagem.
A autodefinição é a parte do
discurso no qual um intelectual diz o que é (a qual corrente intelectual adere,
qual concepção política defende, qual seu posicionamento diante das questões
políticas e sociais, etc.). O pesquisador não pode se contentar com a
autoimagem ou autodefinição dos indivíduos e, no caso que abordamos aqui, dos
intelectuais. A autodeclaração do indivíduo é um dos elementos que devem ser
analisados para identificar a sua postura intelectual. No entanto, esta
autodeclaração deve ser vista criticamente e acompanhada por outras fontes de
informação. O material informativo necessário para se identificar qual é a
postura intelectual de um indivíduo é, além da autodeclaração (o discurso sobre
si mesmo e sua posição e posicionamento), a prática efetiva e sua prática
discursiva. Desta forma, é necessário: a) analisar sua autodefinição: como ele
definia sua própria posição diante da sociedade e dos meios intelectuais
(academia, esfera social e/ou intelectualidade), b) analisar sua prática
discursiva: o conjunto do seu discurso no qual explicita sua real posição
diante da sociedade, política, intelectualidade, etc. e c) analisar sua prática
efetiva: como ele, efetivamente, se relacionava com a academia, esfera social
e/ou intelectualidade e com a política e a sociedade.
Assim, cabe ao pesquisador
acessar esse material informativo e realizar sua análise. A autodeclaração,
após ser acessada, pode dizer o que corresponde à realidade ou não. Por
exemplo, um intelectual pode se autodeclarar social-democrata, progressista,
liberal, conservador, comunista, etc. Essa é sua autodefinição política. Da
mesma forma, esse mesmo intelectual pode defender a tese da “autonomia da
ciência” e da neutralidade e que os intelectuais devem representar o
“universal”. Essa seria sua autodeclaração no que diz respeito ao seu posicionamento
diante da ciência e da intelectualidade. Mas também, se for um sociólogo,
poderia se autodefinir como um “sociólogo crítico” ou “neutro” ou, se fosse um
geógrafo, se autodefinir como “marxista”, “humanista” ou “positivista”. Essa é
sua autodefinição intelectual. Ao pesquisar um intelectual é preciso buscar sua
autodefinição. Uma vez acessada a sua autodefinição, torna-se necessário pesquisar
se ela é verdadeira ou falsa. Em muitos casos é verdadeiro, bem como em muitos
outros é falsa.
Como verificar se a
autodefinição é verdadeira ou falsa? É por isso que é necessário analisar sua
prática discursiva e sua prática efetiva. Esses dois itens permite concluir se
a autodefinição é verdadeira ou falsa. Por exemplo, se um intelectual se diz
“crítico do poder”, um contestador e adepto da transformação social, é possível
verificar se isso é verdadeiro ou falso analisando sua prática discursiva e sua
prática efetiva. A prática discursiva é o que ele efetivamente realiza em seus
discursos. Um indivíduo pode fazer um discurso democrático de forma
autocrática. A frase “você deve se submeter ao regime democrático” é um bom
exemplo para mostrar que a afirmação discursiva aponta para pensar que o seu
autor é um democrata, mas, ao mesmo tempo, a forma como ele efetiva o discurso
é autocrático. É por isso que a afirmação deve ser analisada e necessita da
confirmação: “A afirmação é uma declaração afirmada conscientemente no discurso
e confirmação é a efetivação disso no discurso, a prática discursiva. A
afirmação discursiva é o que o discurso diz e a confirmação é o que
efetivamente faz. Pode haver coerência ou contradição entre afirmação e
confirmação” (VIANA, 2015c, p. 55). Assim, a afirmação discursiva pode ser
coerente ou não com a efetividade discursiva e por isso torna-se necessária a
sua confirmação. A análise da prática discursiva é fundamental para descobrir a
efetividade discursiva, a coerência ou incoerência entre o dito e o efetivado.
A prática discursiva vai além da
autodeclaração. Um intelectual que afirma ser progressista e escreve artigos
defendendo ideias conservadoras e outro que se diz anarquista, mas escreve
textos apoiando candidatos para eleições, mostram a incoerência entre o dito e
o efetivado e isso significa que a prática discursiva refuta a autodeclaração.
Cabe ao pesquisador, portanto, demonstrar que sua autodeclaração é falsa e isso
é comprovado por sua prática discursiva e que, portanto, trata-se de um
pseudoprogressista e um pseudoanarquista, respectivamente.
Sem dúvida, existem muitos casos
opostos. Um intelectual pode se autodeclarar marxista e demonstrar isso em sua
prática discursiva. Isso ocorre quando ele, efetivamente, utiliza os conceitos,
teorias e concepções marxistas e na perspectiva do proletariado. Cabe ao pesquisador
analisar o uso dos conceitos, teoria, etc. e assim ter a confirmação de que a
autodeclaração corresponde à prática discursiva, sendo, portanto, verdadeira.
Existem alguns casos em que não
existe autodeclaração ou ela não é clara e objetiva. Um cientista pode
simplesmente não declarar qual é sua concepção política e sua concepção de
ciência. Nesse caso, a prática discursiva se torna um material informativo
basilar. Em outros casos, o cientista pode ser confuso, contraditório, volúvel
(quando em uma oportunidade afirma ser algo e em outra já se autodeclara de
outra forma) em suas declarações sobre si mesmo. Nesse caso, o pesquisador deve
observar se a volubilidade é devido ao decorrer do tempo, significando mudanças
de postura (um hegemônico que com o passar do tempo se torna dissidente ou um
engajado que se torna ambíguo, por exemplo), confusão ou ambivalência, formação
intelectual deficiente, indecisão por certas determinações, tal como a pressão
social (alguns intelectuais podem, por covardia ou situações determinadas,
dizer que é o que não é, ou, então, se mostrar definido e sem ambivalência
apesar de ser indefinido e ambivalente).
No entanto, é preciso ir além da
análise da autodeclaração e da prática discursiva. A identificação da postura
intelectual de um indivíduo se concretiza com sua prática efetiva, ou seja, o
que efetivamente ele faz e se isso é coerente ou não. Por exemplo, Foucault se
dizia um crítico do poder (autodeclaração) e escrevia textos de crítica ao
poder (efetividade discursiva)
,
mas, no entanto, passou sua vida atrelado ao poder (MANDOSIO, 2011). Assim, a
autodeclaração e a prática discursiva são importantes para verificar a
verdadeira concepção de um intelectual e por isso a prática efetiva se torna um
complemento necessário. Obviamente que este exemplo é apenas uma possibilidade,
pois existem diversos casos de coerência entre autodeclaração, prática
discursiva e prática efetiva. No caso de incoerência entre autodeclaração e
prática discursiva, a prática efetiva pode oferecer a resposta final ao
descobrir se, nas relações sociais concretas, o intelectual em questão confirma
a autodeclaração ou a prática discursiva, embora o mais comum seja a coerência
com a última.
A prática efetiva é aquela na
qual o intelectual exerce sua profissão e atividades intelectuais, o que
permite observar se existe coerência entre sua autodeclaração e prática
discursiva com relação à sua profissão, e aquela em que desempenha práticas
políticas, se posiciona em relação às questões sociais, etc., o que pode ser
efetivado tanto na sua própria vida profissional e acadêmica quanto em outros
lugares (imprensa, partidos, grupos políticos, meios de comunicação em geral,
comunidade, associações diversas, etc.). No caso citado de Foucault, a sua
prática efetiva mostra o seu atrelamento e relação com o aparato estatal e
outras instituições, bem como sua volubilidade em seguir os modismos acadêmicos
(MANDOSIO, 2011). Assim, a sua autodeclaração de posição política é incoerente
com sua prática efetiva. Da mesma forma, alguns intelectuais podem criticar a
academia, a ciência, a sua esfera social, mas se encontra totalmente integrado
na mesma, inclusive assumindo presidência de associações científicas
hegemônicas, o que significa uma incoerência. Claro que cada caso concreto deve
ser analisado em sua especificidade, bem como o processo evolutivo do referido
intelectual, entre outras determinações.
Em síntese, a identificação da
postura intelectual de um indivíduo da classe intelectual precisa ser pautada
por esses três aspectos: autodeclaração, prática discursiva, prática efetiva.
No entanto, isso é complementado, como no caso de qualquer discurso, pela
análise do contexto social (a sociedade numa determinada época) e cultural (a
cultura da época). Esse elemento é importante para inserir a evolução
intelectual do indivíduo em questão na totalidade das relações sociais, tanto
nas relações sociais concretas quanto no mundo cultural onde emerge e ganha
significado. As mutações de um intelectual são explicadas tanto pela sua
evolução biográfica, quanto pela sua evolução social, pois as mudanças sociais
atingem os indivíduos, podendo mudar sua postura intelectual, seja por pressão,
necessidades, etc. A análise apenas da prática efetiva não poderia mostrar
isso. Da mesma forma, se dizer “esquerda” nos Estados Unidos tem um significado
distinto do que no caso brasileiro ou francês.
Desta forma, identificação da
postura intelectual de um indivíduo possui esses cinco aspectos fundamentais
(autodeclaração, prática discursiva, prática efetiva, contexto social, contexto
cultural) que são separadas e reunidas no momento da análise. De acordo com o
método dialético, o “concreto é o resultado de suas múltiplas determinações” (MARX,
1983; HEGEL, 1980) e assim é essa totalidade de elementos e determinações que
permitem a reconstituição de qual é a postura intelectual de um determinado
pensador. Através desse procedimento é possível identificar qual é a postura
intelectual de um determinado integrante da intelectualidade.
Referências
FOUCAULT,
Michel. Microfísica do Poder. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
FOUCAULT,
Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis:
Vozes, 1983.
HEGEL, G. W. F. Introdução à
História da Filosofia. 4ª edição, Coimbra: Armênio Amado, 1980.
MANDOSIO, Jean-Marc. A
Longevidade de uma Impostura. Michel Foucault. Rio de Janeiro: Achiamé,
2011.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2a edição,
São Paulo: Martins Fontes, 1983.
VIANA, Nildo. As Esferas
Sociais. A Constituição Capitalista da Divisão do Trabalho Intelectual. Rio
de Janeiro: Rizoma, 2015b.
VIANA, Nildo. Intelectuais Venais e Axiologia. Revista Axionomia (GPDS/UFG). Vol. 01, num. 01, jan./jun. de
2015a.
VIANA, Nildo. Introdução à
Crítica da Ideologia Gramsciana. Marxismo
e Autogestão. Ano 02, num. 03, jan./jun. 2015c.