CARTA ABERTA AOS INTELECTUAIS
Rudolf Berg
Prezados intelectuais, eu vos escrevo essa carta para
explicar o que nós somos, o que deveríamos e podíamos ser. É uma solicitação e
uma exigência aos intelectuais para tomarem uma posição digna diante de uma
realidade social que está se encaminhando para uma grave crise social que pode
ameaçar até mesmo a existência humana. Por isso a leitura atenta e completa
dessa carta se faz necessário, bem como ela em si e seu apelo a todos os
intelectuais.
Os intelectuais são geralmente conservadores. Apesar da
propaganda (e não passa disso) do suposto papel crítico do intelectual na
sociedade moderna, não é isso que se verifica na realidade concreta. E quais são
as razões disso? É possível a superação dessa realidade? Qual deveria ser a função
do intelectual na nossa sociedade? Como intelectual é preciso dizer que é
possível superar o conformismo, o conservadorismo, o progressismo que impera
nos meios intelectuais. Essa é uma “carta”, que sai dos formalismos que a
intelectualidade acaba se submetendo, de um intelectual para outros
intelectuais.
Os intelectuais são, em sua maioria, conservadores,
conformistas. No máximo são “progressistas”, ou seja, “reformistas”, uma forma
socialmente elegante de ser conservador. Isso é derivado da classe social de
pertencimento dos intelectuais: a intelectualidade. A classe intelectual é
conservadora por sua posição na divisão social do trabalho e dos interesses
derivados daí, que são interesses de classe e, ao mesmo tempo, interesses
individuais, pessoais. Os intelectuais possuem um certo “status”, alguns possuem
níveis salariais mais elevados que outros setores da sociedade. Os intelectuais
(cientistas, artistas, técnicos, professores, etc.), em seus estratos superiores,
recebem altos salários dos seus empregadores capitalistas. Para servir ao
capital, os intelectuais recebem vantagens para seus estratos superiores e
migalhas para seus estratos inferiores. Em troca disso, a classe intelectual
exerce a função de criar ideologias e produções intelectuais para reproduzir
essa sociedade, naturalizando-a, eternizando-a, legitimando-a. É isso que
explica o conservadorismo da maioria dos intelectuais.
Isso, no entanto, não é um fatalismo. Tanto isso é verdade
que existem vários intelectuais não conformistas, como este que vos escreve
esta carta. Assim, o que são os intelectuais é uma coisa, o que me interessa é
o que devem ser. Ao intelectual real, de carne e osso e geralmente conservador,
contraponho o intelectual ideal, aquilo que ele deveria e pode ser. Sem dúvida,
se o intelectual abandona sua posição conservadora (de qualquer tipo, incluindo
a “progressista”), sofrerá as consequências. Essas consequências, no entanto, são
menores para aqueles que são estabilizados profissionalmente e são mais
necessárias para os que não possuem tal estabilidade. E o aumento dos
intelectuais que rompem com o conservadorismo, permite diminuir tais consequências
negativas. Mas também existem as consequências positivas, das quais trataremos
no final dessa carta.
O mundo hoje caminha para uma crise sem precedentes. O
capitalismo, como modo de produção, está se esgotando. Além dele manter a exploração
e aumentar o seu grau, aumentar o desemprego, a miséria, a fome, que hoje
atinge mais de um bilhão de pessoas, ele traz outros motivos para buscarmos
superá-lo, tal como a ameaça de destruição da humanidade, que pode sair dos
filmes de ficção científica e se tornar realidade. A destruição ambiental em
alta escala é um dos elementos que podem gerar o fim da humanidade. Os seres
humanos, seguindo a dinâmica do capitalismo, agem como o bicho da goiaba. Vão se
alimentando do planeta até exauri-lo e destruir sua própria fonte de vida. As
crises capitalistas e o esgotamento do modo de produção trazem o retorno do
barbarismo, doenças já superadas retornam, a fome atinge um de cada sete ser
humano, a destruição ambiental se faz sentir na pele dos indivíduos com o
esquentamento e mudanças climáticas, a crise moral e o hedonismo fazem muitos
seres humanos regredir para um nível de animalidade (onde o prazer se torna a
meta e o critério absoluto). Alguns países – Portugal, Espanha, Grécia – apenas
manifestam crises sintomáticas que escondem suas raízes mais profundas e que em
breve tende a se espalhar por diversos outros países, incluindo os
todo-poderosos países imperialistas. Se o barbarismo já se esboça, nesses
momentos eles se multiplicam, se aprofundam, se tornam hegemônicos.
A responsabilidade dos intelectuais nesse momento é enorme. São
eles que podem identificar os sintomas, fazer o diagnóstico e apresentar o
prognóstico, desde que abandonem seus interesses mesquinhos e se preocupem com
o futuro da humanidade e dos seus próprios filhos e netos. Hoje se impõe a necessidade
do ato de romper com o conservadorismo e se negar a realizar a função que o
capitalismo impõe e assumindo a responsabilidade diante da humanidade e do
saber, apontando para uma transformação profunda e total da sociedade. Isso, além
de ser mais belo, honesto, honrado, é também prazeroso, pois pode nos
reconciliar com a essência humana, com aquilo que Marx denominou práxis, o trabalho humano livre,
teleológico e consciente que nos satisfaz quando olhamos para os seus
resultados e com relações sociais re-humanizadas, sinceras, honestas,
solidárias, fundadas na liberdade e igualdade sociais. Cabe ao intelectual
dizer a verdade, não compactuar com as mentiras e injustiças em todos os
lugares (a farsa eleitoral, as mentiras governamentais, a falsidade do
progressismo que apenas disputa o poder, a exploração dos trabalhadores e mais
milhares de exemplos que poderiam ser citados). Inclusive deveria repensar suas
práticas, profissão, etc. Ao compactuar com as injustiças de professores contra
alunos, de intelectuais contra outros intelectuais, ao se silenciar, ao se
omitir, ao cometer injustiças, produzir ideologias e reproduzir mentiras, o
intelectual mostra não apenas covardia, desumanidade, mas também mesquinharia. O
intelectual que compactua com as ilusões, mentiras, e fica a serviço dos
poderosos, governantes, capitalistas, se torna um ser desprezível e que não se
realiza como ser humano. O produto do seu trabalho ao invés de satisfação traz
vergonha e sentimento de culpa. Se ele abandona a função de serviçal dos
capitalistas, burocratas e governantes, ele sofre a consequência negativas de talvez
ter menos dinheiro na conta no final do mês, mas pode chegar perto de se
realizar como ser humano e satisfação com os resultados do seu trabalho, sendo
essa a consequência positiva.
Além de serem indivíduos pertencentes a uma determinada
classe social, a intelectualidade, os intelectuais, são seres humanos e isso
precede sua posição de classe e social. Ao invés de se entupir de remédios para
sobreviver e dormir, por se vender e subordinar aos capitalistas e burocratas,
eles podem, caso decidam e assim esbocem sua liberdade, poderão ter o sono dos
justos. Então precisamos exigir dos intelectuais o mínimo que se espera deles:
compromisso com a verdade, com os explorados e injustiçados, com a
transformação radical do mundo. Ao invés de intelectuais aristotélicos
reprodutores de ideologias legitimadoras da exploração e miséria humana,
intelectuais sartreanos que superam a imanência do pertencimento de classe e realizam
a sua transcendência, ficando do lado do proletariado e assim ajudando a
construir um novo mundo. Essa é a exigência mais urgente para os intelectuais
em nossa época.