O Pobre de Direita e a Miséria do Intelectual de Esquerda
Nildo Viana
Hoje vem se tornando comum ver
alguns breves artigos e referências em redes sociais a uma figura curiosa,
denominada “pobre de direita”. Esse é criticado, ironizado, condenado. É possível
discutir quem é o suposto “pobre de direita”, o significado desse termo, os
indivíduos que “encarnariam” esse rótulo, entre outros problemas. Mas não basta
estudar e analisar o rotulado, pois assim corremos o risco de reproduzir a
rotulação e os rotuladores. É preciso ir além e analisar também os rotuladores.
Por isso vamos, inicialmente, analisar o significado da expressão “pobre de
direita” e depois vamos analisar quem são os intelectuais e aspirantes a
intelectuais
que inventaram tal termo e por qual motivo.
Em primeiro lugar, a expressão “pobre
de direita” é extremamente “pobre”. O que é ser “pobre”? O que é ser de “direita”?
O termo “pobre”, como conceito que expressaria algum grupo ou categoria social
é impreciso, abstratificado, ideológico. Quem é “pobre”? Quem ganha menos de 2
salários mínimos? Quem é desempregado? Quem não tem casa própria? Os mendigos?
O termo “pobreza” é uma abstratificação e por isso não tem significado preciso
e real. Os institutos de pesquisa de opinião inventam critérios para delimitar
quem é “pobre” e geralmente é a renda o critério principal, quando não é o
único
.
Na concepção marxista, esse termo não tem sentido, nem precisão. O uso desse
termo abstrai as classes sociais e sua conceituação e a substitui por um termo
abstratificado. Assim, só teria sentido se fosse delimitado, precisado,
relacionado com a totalidade das relações sociais e com as classes sociais. Outra
questão é o caráter pejorativo que geralmente tem a palavra “pobre”, tanto no
sentido geral quanto no sentido de “grupo social”.
O outro termo que complementa a
expressão é “direita”. O que é a direita? A direita seria a posição política
que se opõe à esquerda e nessa antinomia há distintas definições de ambos os
termos. Tradicionalmente, e que era hegemônico até pouco tempo atrás, a direita
era a burguesia acompanhada por seus representantes e aliados e a esquerda era
o proletariado ao lado de seus representantes e aliados. Os liberais, no
entanto, buscaram mudar o sentido das palavras, a direita passou a expressar a
posição dos partidários da “liberdade” e/ou do “mercado” e a esquerda passou a
ser a posição partidária da “igualdade” e/ou do “estado”, ou seja, passou a
girar em torno de princípios ideológicos abstratificados
.
Essa deformação liberal (logo, “de direita”) dos termos “direita” e “esquerda”,
que ofuscou o seu caráter de classe, foi antecipada pela deformação dos
bolchevistas (“de esquerda”), que deslocou o significado desses termos das
lutas de classes para lutas de partidos. Isso ocorreu através da autodeclaração
do partido bolchevista segundo a qual ele seria a suposta “vanguarda” do
proletariado e, por conseguinte, a própria “esquerda”, tendo vizinhos pela
direita (a social-democracia, que seria “centro-esquerda”, esquerda reformista
ou algo parecido) e vizinhos da esquerda (os “esquerdistas”, extra ou
antiparlamentaristas que estariam acometidos por uma “doença infantil”, segundo
Lênin e seus discípulos).
Assim, esses termos
abstratificados, direita e esquerda, são problemáticos e seu caráter abstratificado
permite os mais patéticos malabarismos, como, por exemplo, dizer que o nazismo e
o regime militar no Brasil são de esquerda por ser estatista (usando a
deformação liberal segundo a qual haveria uma oposição em torno do dilema “mercado”
ou “estatização”, sendo que todas as duas são posições não-marxistas, pois o
marxismo é antimercado e antiestado, bem como ambos são prejudiciais ao
proletariado). Da mesma forma, permite que partidos como o Partido Bolchevique
denomine como direitista e contrarrevolucionário todos (revolucionários e
proletários) que lutam contra o regime ditatorial implantado por ele. Isso cria
uma confusão gerada pelo obscurantismo político da direita e da esquerda. E
ambas ganham com isso.
A política obscurantista sempre
foi a política tanto da direita quanto da esquerda. Manter a ignorância
facilita a manipulação eleitoral ou político-partidária. É por isso que a
expressão “pobre de direita” é obscurantista. Hoje, diversos “intelectuais de
esquerda” (jornalistas, blogueiros, etc.) vociferam contra o “pobre de direita”.
Assim, a expressão abstratificada é encarnada em indivíduos reais, de carne e
osso. Existem inúmeros textos na internet sobre essa fantasmagoria chamada “pobre
de direita”. Mas quais são os indivíduos reais que encarnam esses termos
abstratificados? Um professor de esquerda pode nos responder a essa pergunta. O
pobre de direita seria aquele indivíduo “pobre” que se considera liberal, sem
ter capital e propriedade, que passa a vida sonhando ser burguês, que é contra
os direitos sociais e contra o Estado
. O
“pobre” não é definido, mas, no fundo, é o trabalhador, como deixa entrever
alguns textos. Mas a esquerda eleitoral não pode falar mal dos trabalhadores e
por isso é melhor usar um termo que a maioria não se identifica: “pobre”.
Basta ver os autores dos
diversos textos que tratam disso, dos blogs e meios de comunicação em que isso
aparece, para identificarmos rapidamente os produtores e reprodutores dessa
expressão ridícula e abstraficada. São os intelectuais de esquerda, sendo que
atualmente a maioria é composta por viúvas do PT (Partido dos “Trabalhadores”),
bem acompanhada pelas outras esquerdas que nunca ultrapassam o nível da disputa
eleitoral.
O termo “pobre de direita” é uma
expressão abstratificada que quer convencer que pobre deve ser de esquerda... E
ser de esquerda quer dizer adepto da burocracia estatal e defensor do aparato
estatal, bem como dos supostos benefícios oferecidos por ele, como a “proteção
social”. E, por conseguinte, eleitor do PT ou dos partidos da dita esquerda,
cada vez mais direitista, diga-se de passagem. Eis a mágica: trabalhador deve
votar no PT, senão é um “pobre de direita”! Os intelectuais de esquerda se
esquecem de esses “pobres de direita”, em sua grande maioria, votaram no PT, que
foi eleito quatro vezes para o governo federal e este, uma vez no poder,
executou políticas neoliberais e neopopulistas e abandonou os trabalhadores,
perdendo seu apoio. Mas o PT arrumou emprego e pagou bem aos intelectuais de
esquerda, que agora temem perder os privilégios e por isso vociferam
raivosamente contra os “pobres de direita”. A lógica petista deve ser:
continuem pobres, mas sejam de esquerda! O objetivo é fazer o “pobre de
direita” virar “pobre de esquerda” e para isso ele deve votar no PT. Mudar a
posição política e continuar sendo explorado, enganado, humilhado, etc. Mas a
vida dos petistas e dos intelectuais de esquerda certamente melhoraria...
Em síntese, o pobre de direita
deveria se transformar em pobre de esquerda, ou seja, social-democrata.
Obviamente que “social-democrata”, no Brasil, é uma mera ficção
.
No fundo, significa ser petista, ou seja, neoliberal neopopulista, que esteve
no governo federal por três mandatos presidenciais completo e metade de um
outro mandato e não fez nada para que os “pobres de direita” ficassem ao seu
lado. A única coisa que fez foi jogar migalhas para o lumpemproletariado,
cooptar setores de movimentos sociais e da intelectualidade. Não fez política
para os trabalhadores, por razões obvias, pois quem representa a burguesia não
pode beneficiar o proletariado e as classes desprivilegiadas.
Em poucas palavras, os
intelectuais de esquerda consideram absurdo os “pobres de direita” não serem “pobres
de esquerda”, apesar de terem apoiado as pobres políticas de direita para os “pobres”,
que continuaram “pobres”, independente de serem de direita ou de esquerda
.
Podemos resumir ainda mais: pobre deve ser petista, mesmo que tenha sofrido em
14 anos de governos petistas e por isso não pode ser “direitista”. Quem diria que
até petistas conseguiriam ser criativos a ponto de criar uma nova definição de
direita e esquerda! Direita é quem é contra o PT e esquerda é quem é a favor do
PT! Apesar da originalidade aqui ser apenas uma cópia do que o discurso
reacionário afirma (esse diz que tudo que é petista, inclusive elementos
neoliberais e neopopulistas, é de “esquerda” e “comunista” e vice-versa)
,
uma versão mais suave do estratagema retórico de acusar de fascistas todos que
são contra o PT. Mas isso não é descartado, pois o “pobre de direita” pode
apoiar o fascismo, ou seja, é potencialmente um fascista
.
Nesse momento, os petistas mais
atentos deveriam gritar: “volte João Santana!”
.
Pois com esse discurso retórico, os petistas jamais ganharão eleições novamente.
Agora começa atacar até os trabalhadores... O Partido dos “Trabalhadores” não
gosta dos “pobres de direita”, apesar dele ser um dos principais responsáveis por
muitos deles assumirem hoje posições conservadoras
.
Antes, em 1982, o lema era “trabalhador vota em trabalhador”
.
Depois que os petistas descobriram que o processo eleitoral não funciona assim
e que os candidatos petistas eram cada vez menos trabalhadores, mudaram a
propaganda eleitoral. Passaram a não falar dos trabalhadores. A propaganda
eleitoral funcionou e o PT chegou ao poder. Nada fez para os trabalhadores e
perdeu apoio continuamente. Agora ataca os trabalhadores, sem assim chamá-los,
mas com a pecha de “pobres de direita”.
Claro que alguns podem
questionar se isso é apenas obra de petistas. Sem dúvida, isso não é obra
apenas de petistas e sim dos intelectuais de esquerda, tanto desse partido,
quanto simpatizantes e próximos (de outros partidos de esquerda, etc.). Mas a
fábrica de absurdos é comandada pelos intelectuais do PT. Basta ver os sites
e blogs que mais divulgam tais ideias:
1) O
site brasil247
Sem dúvida, a ideia de “pobre de
direita” não foi criação recente. Em pesquisa no google, é possível ver mais de
700 menções a tal termo no ano de 2012
.
Em 2013 um pouco mais que 800, um pouco mais de 1000 em 2014 e também em 2015.
Em 2016, no ano do
impeachment de
Dilma Roussef, dobrou, indo para mais de 2000. Em 2017 chegou a mais de 4 mil
resultados com uso de tal expressão. Claro que se pode dizer que foi o aumento
de eleitores de Bolsonaro ou de pessoas se autodeclarando “liberais” que
promoveu isso. Porém, uma coisa é questionar eleitores do Bolsonaro ou
trabalhadores que dizem ser liberais, outra coisa é usar tal termo, que mostra
o ressentimento dos intelectuais de esquerda em relação aos trabalhadores e os
interesses eleitorais nesse processo. Para quem convive com a classe
intelectual e a acompanha nas redes sociais, o ressentimento (rancor) é visível
e aqueles que estavam supostamente ganhando com o Governo Dilma se tornaram
magoados com os trabalhadores que não a defenderam ou ficaram indiferentes
.
Os intelectuais de esquerda cada
vez mais se integram no capitalismo e em suas disputas e consideram que assim
estão “atualizados” e “politizados”, ao invés de perceberem que assim estão
sendo engolidos pelo movimento do capital e pela hegemonia burguesa. A formação
intelectual é cada vez menor e o posicionamento pautado no interesse pessoal
cada vez mais evidente. Isso é mais forte no caso brasileiro por causa da
política de cooptação do Governo Dilma em relação à intelectualidade. A classe
intelectual é uma classe auxiliar da burguesia, mas os seus setores
hegemônicos, mais eruditos, etc., geralmente preferiam assumir o discurso da
neutralidade ou das posições mais gerais e abstratas. A partir do Governo Dilma
muitos intelectuais passaram a assumir posições pró-governistas e pró-partidárias,
o que reforçou, por sua vez, o antipetismo. Este, uma vez existindo e
conseguindo adeptos nas classes desprivilegiadas, se tornam alvos dos
intelectuais petistas e seus semelhantes. O impeachment
e a diminuição de políticas governamentais favoráveis (de cooptação) à classe
intelectual completa o quadro. É nesse momento que surge o ressentimento dos
intelectuais de esquerda e seu curioso ataque aos “pobres de direita”.
Outra dúvida pode surgir: “mas e
o pobre que se diz de direita”? Em primeiro lugar, o termo “pobre” é
problemático e deve se descartado. No caso, os indivíduos das classes
desprivilegiadas que se dizem “liberais” ou, mais abstratamente, de “direita”,
são raros e de pouca importância política. A maioria desses indivíduos não diz
isso, mesmo apoiando os partidos conservadores e ideias burguesas. No entanto,
a importância do voto nos partidos conservadores (direita) é pequena, da mesma
forma que o voto nos partidos progressistas (esquerda). Seria preciso tematizar
o “pobre de esquerda”, para usar terminologia problemática, pois os indivíduos
das classes desprivilegiadas que votam e apoiam o PT, por exemplo, são tão
enganados e ludibriados, e agem contra si mesmos, quanto os que votam no PSDB
ou qualquer outro partido assumidamente conservador. Em questões concretas,
como, por exemplo, as atuais reformas retrógradas em curso atualmente, o voto
pouco alteraria, pois o que poderia impedir esse processo seria a força do
movimento operário, que é demonstrada principalmente através das greves, mas é
complementada por manifestações, ações, politização, etc. A burocracia
sindical, que fica a reboque da burocracia partidária (veja CUT-PT, CTB-PCdoB,
etc.), não luta mais pelos direitos trabalhistas e sim por seus próprios
interesses, especialmente eleitorais e burocráticos. Nesse sentido, seria a
auto-organização e autoformação dos trabalhadores o foco dos intelectuais
engajados e não ataques aos “pobres de direita”, que não serve para politizar e
sim para despolitizar.
No plano cultural e político, a
maioria dos trabalhadores sempre apoiou e votou nos partidos conservadores,
pois, se assim não fosse, só existiriam governos de esquerda ou revoluções.
Isso não é novidade e não é inventando essa coisa esdrúxula que é a expressão
“pobre de direita” que se avança na compreensão e na luta política. Assim, a
questão mais importante é a questão que sempre intrigou e preocupou o bloco
revolucionário: a passagem do proletariado de classe determinada pelo capital
(desde sua condição de classe até a hegemonia burguesa, o que mostra o
predomínio das ideias dominantes no proletariado e que atinge o conjunto das
classes desprivilegiadas), para classe autodeterminada, revolucionária. Essa é
uma discussão muito mais complexa e profunda e não a dicotomia entre “direita”
e “esquerda”. Se os trabalhadores vão escolher o carrasco da direita ou o
carrasco da esquerda, tanto faz. O que interessa é que eles se libertem dos
seus carrascos e conquistem a liberdade real.
Essa discussão mais complexa
remete ao problema da hegemonia burguesa, expressa tanto pelos conservadores
(direita) quanto pelos progressistas (esquerda) e como essa última é peça chave
para que os trabalhadores não ultrapassem o nível do reformismo (e, hoje em
dia, nem cheguem a tal nível...). Portanto, cabe aos intelectuais engajados
criticarem os chavões da esquerda, tal como a do “pobre de direita”, bem como
denunciarem a miséria mental dos intelectuais de esquerda, e apontar para a
necessidade do proletariado e classes desprivilegiadas combaterem tanto
conservadores quanto progressistas, almejando sua real libertação, o que só
pode ocorrer com a autogestão social